0002 - Conto de João Anzanello Carrascoza

Traços  
As evidências não enganam, não. Aquele ali? Não, o rosto é de menino, não me diz nada. Olha o nariz, perfeito demais… Vai agradar gregas e troianas, veja a vizinha ali, do guarda-sol vermelho, até mudou de posição, mas não dou a ele um grão dessa areia. Sabe aqueles búzios espiralados, no meio dos rochedos? Aqueles brancos, que enchem a ponta da praia? Exato! São lindos, mas quebram como unhas. Pois é, servem só pra gente ver, e de longe! Olha, nada que é divino me interessa. Só os defeitos me atraem. Gosto de Júpiter pelos seus deslizes. Não a vitória sobre os titãs, mas a fraqueza pelas mortais. Qual? O musculoso, de calção preto, saindo da água? Concordo, um rochedo, a gente vai descobrindo aos poucos, não dá pra ver tudo de uma vez. As pernas são de Mercúrio, eu diria, uma massa bem torneada. Bíceps de Hércules, repare como brilham… Mas é um falso tubarão. Vem vindo pra cá, vai passar, preste atenção. O que tá errado? Ora, você não percebeu? É só a casca, valva dura. Os olhos desmentem o corpo, os olhos só têm dunas, não têm mar nenhum. O quê? Ah, aquele lá no fundo, nadando? Percebi, sim, quem é que não nota um barco à deriva? Pele queimada de sol, caiçara. E, como todo caiçara, vive de se exibir pra turistas, não arreda o pé dessa paisagem. Se fosse um argonauta, que abandona tudo por um ideal... Mas, não, é igualzinho àquelas conchas rosadas, a gente se encanta à primeira vista, depois deixa de lado. O meu tipo? Eu prefiro o de traços fortes. Traços, não. Sulcos. Gosto daquele ali, tá vendo? Não, o de tatuagem, não, tatuagem é coisa de garoto. Aquele, o da cicatriz no rosto. Faca ou caco de vidro, o que você acha?

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